Neco

Um anjo caiu do céu.


Numa tarde de calor escaldante, as freiras reunidas na capela oravam e entoavam um cântico de louvor.
Quando de repente um estrondo, tal e qual um trovão, interrompeu as orações e a música.
Elas olharam para cima em direção ao barulho e ficaram paralisadas com a visão.
O teto se rompeu. 
A luz inundou a pequena capela... 
E o pequeno anjo apareceu.
Que visão magnífica! Um pequeno anjo, naquela capela. Amém.
Sua pele era alva e os seus cabelos finos num loiro quase branco. E os olhos eram de um azul celestial intenso. Sim, um verdadeiro anjo desceu dos céus e surgiu naquela capela.

Uma hora antes, na rua do colégio das freiras Maria Imaculada:
- Vai!
- Corre!
- Aí!
- Chuta! Chuta!
- Fora! A bola é nossa!

O pequeno Neco estava na calçada olhando os meninos mais velhos jogarem futebol de rua. Ele não podia participar. Os meninos não deixavam. Diziam que ele era muito pequeno e que o jogo era apenas para garotos maiores. 

Neco se contentava em ficar correndo pra lá e pra cá pegando a bola na função de gandula. Dessa forma ele se sentia inserido na turma dos maiores e nutria, mesmo que pequena, a esperança de um dia ser aceito no time.

De repente, Juca deu um chute muito forte e a bola subiu zunindo, passou pelo teto da lanchonete do colégio e foi direto para dentro de uma portinhola que dava acesso ao forro.
Um dos meninos correu, pulou o muro e foi tentar resgatar a bola.
Neco quando viu o rapaz correndo imediatamente o imitou e foi atrás da bola. Afinal, ele era o gandula. Era dele a responsabilidade de resgatar a bola fujona.

Então o rapaz falou:
- Entra você pela portinhola porque é menor e pesa menos, mas atenção procure pisar apenas nos caibros de madeira para não quebrar o forro. Passa bem devagar e vai até o fundo do forro, pois é por lá que a bola foi parar. Eu vou ficar aqui de fora te esperando.

E o pequeno seguiu adiante e mergulhou na escuridão em busca da bola. Comprimiu seus olhinhos em busca da redonda. E ela surgiu lá no fundo aninhada entre uma telha e a madeira.
Neco ficou tão empolgado que por alguns segundos esqueceu-se do aviso do amigo e ao invés de pisar sobre os caibros pisou na madeira fina do forro e... Crash.

Ó, ó, ó, ó, ó, ó, ó.

O "pequeno anjo" rompeu a madeira do forro e ficou pendurado balançando suas perninhas brancas sobre as cabeças das freiras que perplexas olhavam para aquela cena inusitada.
Quando os meninos perceberam o acontecido correram resgatar o pequeno que ficou com metade do corpo dentro do forro e a outra metade pendurada no teto da capela.
Recuperada do susto a madre superiora gritou com os meninos que a esperassem, mas eles correram cada um para um canto.

Neco, com seu olhar angelical e cabelinhos de anjinho barroco correu desesperadamente para casa, entrou afobado pela porta da cozinha e foi logo dizendo:
- Eu posso ir pra casa da vovó? Estou com tanta saudade dela.
Com certeza Neco queria se refugiar na casa da avó para fugir do castigo que, sem sombra de dúvida, receberia ao descobrirem a sua mais nova "arte".
E sua tia falou.
- Entra aqui na sala querido. Venha ver quem veio nos visitar.
E Neco, com seus olhinhos azuis da cor do céu, olha para dentro da sala e vê sentada na poltrona segurando um copo de limonada a madre superiora do colégio das freiras Maria Imaculada.

Reza a lenda que até hoje circula pela cidade a história do dia em que as freiras estavam em oração e um anjo desceu dos céus rompendo o teto da capela. 
(História baseada em fatos reais)

......................

Neco Peteco e o saco de açúcar.

É engraçado como a minha imaginação é rápida e fértil. Uma frase ou uma simples palavra podem me levar à construção de um cenário completo com personagens e toda a riqueza de detalhes que me espanta. Certa vez minha cunhada comentou:
- Helô, você conta as coisas de um jeito que a gente entra na história. Parece de verdade. Você devia escrever essas histórias.

É claro que eu não cri na conversa da minha cunhada. Até parece que meia dúzia de bobagens proferidas me tornaria uma escritora, mas a verdade é que eu tenho mesmo essa facilidade de criar cenários e histórias em minha cabeça e que raramente  vão para o papel, digo, computador.

Certo dia eu estava conversando com meu companheiro sobre as aventuras vividas em nossa infância e as diferenças existentes entre a educação de hoje e da nossa época de pequenos.
Em dado momento ele me contou que sua mãe o mandava buscar açúcar no empório e que ele andava quilômetros carregando um saco de cinco quilos. E com um detalhe de deixar o cabelo em pé de qualquer delegado de proteção do menor: ele tinha apenas cinco anos. Apenas cinco aninhos. Consegue imaginar?

Então eu comentei que quando somos crianças tudo tem um significado maior: casa, cidade, distância, animais. Do ponto de vista de uma criança tudo é bem maior do que realmente é. Você já voltou para visitar algum lugar em que conhecera quando era criança e o achava enorme? Não fica a sensação de que tem alguma coisa errada, pois o lugar encolheu?

Ah, em vão foram os meus argumentos, pois ele continuava irredutível: - É verdade, eu me lembro de andar quilômetros carregando aquele saco que era quase do meu tamanho e eu ficava mudando o peso de lado porque doía meu braço. Minha mão ficava marcada.

E eu comentei: - A sua mãe pode ter sido severa, mas não acredito que ela mandaria uma criança de apenas cinco anos caminhar quilômetros carregando um saco de açúcar. Nossa, se isso realmente foi verdade e não fruto da sua imaginação, nos dias de hoje ela seria acusada de maus tratos e correria o risco de perder a sua guarda.

Fim da conversa e aí eu falo para ele: - Caramba, eu estou vendo você pequeno, franzinho, branquinho e com seus cabelinhos loiros quase brancos caminhando por uma estrada enorme sem fim. Seu rostinho está suado e vermelho de tanto andar e carregar um saco enorme de açúcar. De vez em quando você pára, limpa o suor do rosto com sua mãozinha franzina e troca o peso de mão.  Então olha para trás e vê a estrada infinita que já percorreu. Daí olha para frente e percebe a estrada infinita que ainda precisa enfrentar.
 – Pausa -
Já se passaram algumas horas da nossa conversa, mas minha mente é perversa. Quando uma imagem cria vida em meu cérebro costuma demorar a ir embora. E neste momento o Neco ainda carrega um enorme saco de açúcar pela estrada infinita. Seu rostinho está ainda mais vermelho e banhado de suor. Seus cabelinhos finos e quase brancos grudam em sua testinha úmida. Suas mãozinhas estão vermelhas e marcadas pela alça do saco de açúcar. Sua casa nunca chega.

Oh imaginação cruel. Por quanto tempo esse pequeno menino, de apenas cinco anos, caminhará pela estrada da minha mente carregando um enorme saco de açúcar? Sua camisa já está molhada de suor, o saco de açúcar já está quase ultrapassando a sua pequena estatura e ele simplesmente o arrasta pela estrada levantando um enorme rastro de poeira, com suas frágeis mãozinhas de uma criança de cinco anos.

 Será que Neco chegará em sua casa arrastando um enorme saco de açúcar? Será que conseguirei me livrar desta imagem agora que eu a coloquei em sua mente querido leitor(a)? Quem sabe?
....................

Olha aí o Maninho e o saco de leite.

Estava eu tranquila em minha sala quando alguém interrompeu meus pensamentos e:
- Oi moça.
- Tá falando comigo garoto?
- To sim. Eu sou o Maninho. Eu li a sua história contando sobre o Neco Peteco carregando sozinho o saco de açúcar.
- Ahn sei... E o que achou da história, Maninho?
- Bom, quer dizer... Eu acho que ele não andou quilômetros carregando um saco de 5 quilos de açúcar.
-  E por que você acha isso Maninho?
- Ah, porque a distância entre a casa e o empório não dava mais do que três quarteirões.
- E como você sabe disso?
- Porque eu sou o Maninho oras... Maninho do Neco. E eu ajudei o Neco Peteco a carregar o saco de açúcar.
- Ah entendi. Você é o irmão do Neco. Agora faz sentido. Quer dizer que ele não arrastou o saco sozinho. Você o ajudou?
- Bom, se ele carregou sozinho eu não sei. Ele deve ter carregado sim, mas eu me lembro de também ajudar a carregar o saco de açúcar. Oha que era bem pesado.  Ele colocava o saco nas costas e eu ia atrás segurando uma parte do saco. E a gente parava pra descansar porque doíam as mãos.
- Puxa Maninho, me desculpe ter deixado você fora da história, mas eu não sabia.
- Ah tudo bem... Isso é destino de irmão mais novo. O Neco te contou quando a mãe mandou a gente comprar leite na padaria? Era um leite diferente sabia? El e vinha dentro de um saquinho de plástico. Não vinha da vaca que o leiteiro vendia na porta de casa. E a padaria ficava há uns dois quilômetros.
- Então senta que lá vem história.

Neco Peteco foi comprar pão e leite. Leite? Cadê o leite?

Há muitas décadas, nas cidades do interior, quando ninguém sabia o que era leite pasteurizado, pequenos sitiantes levantavam de madrugada para ordenhar suas vaquinhas. Depois eles colocavam o leite obtido com a ordenha dentro de latões de alumínio e estes dentro das carroças. 
Então os sitiantes iam para a cidade. E de rua em rua, de casa em casa vendiam o leite. Eles paravam em frente das casas e gritavam:

- Leiteiro! Leiteiro! Vai leite hoje dona Maria?

E a dona de casa saía com uma caneca ou caldeirão para o leiteiro colocar o leite. Então o leiteiro marcava na caderneta e ela pagava no final do mês. 

E era esse leite que todo mundo estava acostumado a tomar pela manhã, junto com um café quentinho e um pão com manteiga. A manteiga era feita com a nata desse mesmo leite.

Ah, mas hoje era um dia diferente. Havia um burburinho que corria solto pelo bairro. Tinha novidade na padaria da cidade. E não é que estavam vendendo o tal de leite de saquinho? E esse leite ainda era especial, não era da vaca. Era pasteurizado.

- Saquinho com leite pasteurizado dentro? O leite não vem da vaca? Como é que a vaca coloca o leite dela no saquinho hein Neco?

- Ai Maninho, eu não sei. Você faz cada pergunta difícil. Vamos lá à padaria que a mãe mandou comprar esse tal de leite pasteurizado.

E foram os dois rumo à padaria comprar o “leite de saquinho”. Quando chegaram à padaria e pediram o leite ficaram maravilhados com a visão: Um saquinho branquinho e cheio de leite geladinho.

Pegaram o saquinho de leite, colocaram na sacola e rumaram para casa, loucos para experimentar aquela novidade.

Ah, mas como estava longe aquela casa! E a vontade de experimentar o leite crescia quando de repente Neco Peteco teve uma ideia brilhante:

- Maninho, que tal a gente experimentar só um pouquinho do leite? A gente faz um furinho bem pequenino com o dente no cantinho do pacote e a mãe nem vai perceber.

- Boa ideia Neco, mas você faz primeiro.

- Tá bom, me dá aí o saquinho. Segura firme que eu vou furar. Hum que delícia, é geladinho. Agora é a sua vez Maninho.

- Puxa que delícia Neco. É muito melhor do que o leite da vaca do leiteiro...

E assim foram os dois caminhando de volta para casa levando o saquinho de leite pasteurizado que a mãe pediu para comprarem.

Bem, quando finalmente chegaram ao destino o saquinho estava meio cheio ou meio vazio? Bem, tudo depende de quem olha para o saco de leite.

E como terminou essa história? Qual foi a reação da mãe de Neco Peteco e Maninho ao ver o saco de leite meio vazio?

- Pera aí dona! A gente bebeu só um pouquinho pelo buraquinho que fizemos com o nosso dente de criança. O saco de leite estava meio cheio...

Sabe de uma coisa? Eu fiquei curiosa pra saber como acabou essa história. Nem o Neco nem o Maninho contou como foi entregar o saco de leite pasteurizado pela metade à sua mãe.
E você o que achou dessa história? Será que Neco e Maninho apanharam de sua mãe ou ela compreendeu a curiosidade das crianças e aceitou o saco de leite meio cheio (ou meio vazio)? 

 

....................

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Poda

A Partida (na visão de quem fica)

A minha mãe não morreu.