Gostosura ou travessura?

Às vezes eu tenho a impressão de que as crianças de hoje já nascem embaladas à vácuo, enroladas num plástico bolha e sempre com uma extensão acoplada para que em qualquer lugar possa plugar-se na TV, videogame ou internet. Elas não participam da vida, não são protagonistas e sim meros expectadores.

Há alguns anos crianças que pulavam, corriam e se machucavam e tinham joelhos ralados, braços quebrados, cortes e arranhões eram consideradas crianças tipicamente saudáveis. Os pais até comentavam com os amigos sobre essas travessuras com certa ponta de orgulho, e claro esses comentários eram feito bem longe das crianças.

Acho incrível que alguns brasileiros de plantão fazem festa do Halloween para as crianças. E elas fantasiadas e acompanhadas de um adulto (ou mais) vão de porta em porta empunhando uma sacolinha dizendo: “Gostosura ou travessura?”.  Se o dono da casa diz não ter doces o grupo calmamente vai para a casa seguinte. Grande parte dos condomínios, de médio padrão pra cima, tem em suas casas até festa e decoração típicas do Halloween. Uau, quanta travessura!

Mas qual criança do interior ou de bairros mais simples da periferia não conhece o famoso "Gostosuras ou travessuras?" sem conhecer a importada festa do Halloween? Com um simples detalhe: Para as crianças serão sempre gostosuras, já para os adultos tudo não passa de travessuras. 
Confundi a sua cabeça? Então deixa eu te explicar.

Tocar a campainha do vizinho e sair correndo. Já fez isso? Não é uma gostosura? Mas tenho certeza que, para quem foi até o portão atender e não encontrou alguém, isto não passou de travessura.

Encontrar o carro do tio estacionado em frente da casa com a janela aberta e acionar a buzina? Pura gostosura. O tio está até hoje tentando descobrir quem fez a travessura, principalmente porque a buzina travou...

Tomar banho de chuva. Descalçar os sapatos e pular na poça formada pela chuva. Fazer barquinho de papel e colocar na enxurrada e ficar olhando para ele imaginando um barco enfrentando as águas turbulentas da tempestade. Isso sim é gostosura, mas corre-se o risco de chegar em casa molhado e enfrentar a fúria da mãe... Ai, ai isso pode ser travessura.

Subir em árvores e ir para os galhos mais altos. Comer manga com as mãos, dispensando os talheres. E se a manga cair no chão, pegá-la de volta, limpar a parte que sujou na roupa e continuar de onde parou... Isso é pura gostosura.

E tomar vaca preta, vaca amarela? Fazer guerra de mamona, brincar num riacho, correr da vaca no pasto, andar de bicicleta sem freio, sem capacete, sem cotoveleira. Se bem que nem sabíamos o que era capacete e cotoveleira...

Já desceu uma ladeira montado num carrinho de rolemã? Conheço gente que carrega no corpo cicatrizes dessa gostosura até hoje.
Ah, isto sim é gostosura, mesmo que nossos pais, avós, tios, e vizinhos digam que o nome certo de tudo isso seja travessura.

Ah, que fique claro. Eu não tenho nada contra condomínios decorados e festas de Halloween, mas da forma como comparei dá a impressão de que essa infância de gostosuras e travessuras que citei faz parte do passado. E não é verdade. Num país de dimensões como o nosso temos os dois tipos de infância que citei. A dos plugados e protegidos, que são as crianças das cidades maiores com mais acesso à tecnologia e a infância dos que moram em pequeninas cidades do interior, aonde parece que o tempo congelou. Basta sair dos grandes centros e embrenhar nas cidadezinhas dos nossos estados para ver crianças brincando como eu e meus irmãos brincamos um dia.

Infelizmente ainda há outro tipo de infância. Aquela que não queremos ver. A infância dos explorados que trabalham em obras, carvoarias, roças. Enfim, uma infância onde não cabe nem gostosura, nem travessura.
Por favor, registre sua opinião. Um simples gostei ou um radical não gostei me deixará muito feliz. Tenha um dia regado a muita gostosura.

Comentários

  1. Oi Helo
    Adorei teu texto e a inspiração. Parabéns
    Bjos
    Guta

    ResponderExcluir
  2. Amei! Não precisamos destas festas comerciais importadas. Vamos resgatar as velhas gostosuras que os adultos sisudos viam como travessuras!
    Isabelle

    ResponderExcluir
  3. Helo,

    Amei recordar as gostosuras de cça .... ou será que travessuras ..... mas que era delicioso não tem como negar. Dependendo do ponto de vista ... bem só sei que adorei sua sacada!!!!!
    Ana Rita

    ResponderExcluir
  4. Que delícia de texto, Helô!
    Uma gostosura de lamber os beiços!!!
    Beijos,
    Yara.

    ResponderExcluir
  5. Meu pai não deixava eu participar do Halloween. Era "coisa do diabo", sabe? Eu lembro do único halloween que eu fui, depois de muita insistencia. Fizemos uma mistura de papel molhado e jogamos num lugar só. Deu um peso na consciência....
    Conseguimos poucos doces também!

    É bem triste que ainda vivamos com crianças privadas da infância. Gente que sai impune com isso, empresas que fabricam produtos com trabalho escravo infantil...

    Mas lindo ver também infâncias como a tua, né? Que foram infâncias mesmo...

    Acho que, claro, os adultos sempre vão olhar com maus olhos a infância que não é a sua. As crianças da geração seguinte sempre aproveitam "menos". Os adultos esquecem que tem experiências da atualidade que só as crianças de agora tem, e que também são infância....

    Lindo o texto, mãe!

    ResponderExcluir
  6. (a propósito, eu, provavelmente, vou falar que meus filhos "não conhecem o video-game de verdade" e vou escrever sobre Ocarina of Time. E, claro, telefone-sem-fio, subir em árvore. Afinal, minha infância foi um mix)

    ResponderExcluir
  7. Oi Lu, adorei o texto. Me vi em muitos episódios de gostosuras. Como por exemplo, descer uma bela ladeira,atrás do meu irmão José, num carrinho de rolemã de 3 rodas. Adivinhe se eu e o José não caímos?! saí com os cotovelos ralados e alguns tapas de nossa mãe. Hoje eu rio da experiência.
    Déda

    ResponderExcluir
  8. Querida Cacau, em momento algum quis dizer que minha infância foi melhor que a das crianças de hoje. Apenas lembrei que quando éramos crianças, por não haver a tecnologia de hoje nós fomos criados mais soltos. E fazíamos o que dava na telha. Brincávamos com o que tínhamos, que era muito espaço, árvores, animais. Éramos felizes dentro no nosso mundinho porque não conhecíamos outro para desejar ou comparar. Ou melhor, até sabíamos que existiam crianças com brinquedos bacanas. Não sou contra videogame. Minha filha ganhou seu primeiro videogame aos dois anos de idade, mas elas também fizeram gostosuras e travessuras. Lembro-me de algumas: Da árvore no pomar em que subiam. Do dia que acharam que tinha uma cobra na árvore. De quando brincavam de roleta russa. Vou explicar, elas ficavam na porta da cozinha olhando para o Billy que estava no fundo do quintal então elas calculavam que conseguiriam chegar na casa de brinquedo antes dele alcançá-las. Lembro do dia em que uma das filhas prendeu o skate no cachorro e mandou a menor sentar e o cachorro disparou e jogou a menor com o rosto na coluna. O que tentei mostrar com este texto, é que isto não faz parte do passado e sim que está vivo e acontecendo na maioria das cidades nos confins do nosso Brasil. Grande beijo.

    ResponderExcluir
  9. Adorei o texto, Helô! Deixo aqui a minha palavra de encorajamento pra q vc continue escrevendo. Agora, eu detesto festinha de Hallowen, ô coisa plástica, sem sentido , empurrada goela abaixo... Nao é nosso. A Gente comemorando Hallowen é tão feio quanto ver gringo tentando sambar ou os caras lá de fora tentando imitar nosso carnaval ou nossa festa junina. Cada povo com seu jeitinho. Nosso Hallowen tinha q ter mula sem cabeça, saci perere, lobisomem, curupira... Bjus bem gdes!!!!
    Fernanda Martos

    ResponderExcluir
  10. Eu sei, não estava falando do teu texto especificamente. Estava falando de vários e-mails que recebo, correntes, falando do quanto as crianças de hoje em dia não sabem o que é infância. Fico incomodada, porque é uma desvalorização da infância das crianças de hoje. Que existe de outra maneira, mas existe. E que parece uma coisa comum às gerações: desvalorizar a experiência de quem vem depois e quem vem depois desvalorizar a experiência de quem vem antes. Acho que todo mundo idealiza um pouco a infância. Não foi uma crítica ao seu texto, mas a essa maneira das gerações lidarem umas com as outras: com tanta estranheza e distância, quando são filhos, pais, netos, avôs.... - Afinal, pra tanta gente repassar esses e-mails, tem algo aí, né?

    E não acho que a tecnologia tenha podado a liberdade das crianças. Acho que são os pais. Afinal, com mil cursos pra fazer aos 6 anos de idade, quem tem energia pra chegar em casa e aprontar? E que pais deixam os filhos brincarem na rua hoje, com medo de sequestro, assalto, atropelamento?

    Nas cidades do interior, com ou sem tecnologia, acho que a lógica permanece outra. A lógica do contato e não da "segurança"....

    ResponderExcluir
  11. Gostosura de texto, como sempre, cunhada. Eu vivi muitas aventuras e gostosuras assim... A turma toda se exercitava o dia todo na minha infância. Imagina, eu sou a última de uma família com 12 crianças, pensa esse bando todo sem nada pra fazer??!! Que nada, a gente inventava um monte de brinquedos e nos divertíamos muito.Essa nova geração presa dentro de casa, está perdendo tanta coisa legal né mesmo?

    ResponderExcluir
  12. Heloiza

    O mais triste de tudo nos dias de hoje é que as crianças que no passado eram vistas como espertas e fazendo "gostosuras" hoje são rotuladas de DDA ou DDAH. Tem pediatra querendo colocar o "acalma leão" para crianças (não quero nem escrever o nome aqui do tal remédio, para não divulgar mais), nas caixas d'água. E psiquiatras e neurologistas infantis? Alguns são conscientes e ponderados, mas tem aqueles que amam rotular as pessoas desde pequenas. A tecnologia quando usada moderadamente também estimula o raciocínio e a inteligencia. Mas não precisamos excluir, o tomar chuva, andar descalço, brincar com terra, rolar na grama, enfim desfrutar do natural como, muito bem, você descreveu.
    Parabéns. Eu gostei de lembrar, mesmo tendo feito parte das crianças que trabalham desde cedo para ajudar na renda financeira da casa.
    Abraço.
    esther carrenh

    ResponderExcluir
  13. Helo, boa noite.

    Texto interessante. Fui criado em Ribeirão Preto e lembro de algumas gostosuras / travessuras. Bons tempos. Concordo com a Cacau: cada tempo tem sua infância.

    Abraços.
    Claudio

    ResponderExcluir
  14. Mãe,

    este é um dos seus melhores textos. Eu estou amando seus textos sobre infância, acho a coisa mais gostosa. É, são uma gostosura!

    Um beijo carinhoso cheio de saudade!

    Mari.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Obrigada pela visita. Volte sempre que sentir saudades. E por favor, registre aqui a sua opinião:

Postagens mais visitadas deste blog

Poda

A minha mãe não morreu.

A Partida (na visão de quem fica)