Você acredita em mundos paralelos?

Eu sempre digo que tive infância em mundos paralelos.
A primeira foi no interior do Paraná onde brinquei de subir em árvores e plantar bananeira no galho. Eu ficava dependurada igual a um macaco. Eu tinha um galho de goiabeira que era o meu avião. Subia nele e balançava o mais que podia para poder sentir o vento da liberdade. Eu voava na imaginação enquanto o galho balançava. Nunca nenhum adulto apareceu gritando: "Sai daí menina! O galho pode quebrar e você se machucar!"

Quase sempre ao cair da tarde ficávamos “trepados” na cerca (era assim que falávamos: trepar na árvore, trepar no muro) esperando a boiada passar pela rua em frente da nossa casa. Sempre parávamos tudo o que estávamos fazendo para ver a boiada passar. Primeiro vinha o boiadeiro, montado em seu cavalo, tocando o berrante. Logo atrás o gado caminhava ordeiramente, sempre escoltado por boiadeiros que cavalgavam nas laterais para evitar que algum boi (ou vaca) se distraísse e tentasse sair do cortejo, mas às vezes os bois (ou vacas) resolviam por conta e risco, sair do grupo e aí era a maior confusão. Certa vez o portão da casa onde morávamos estava sem a tramela (você sabe o que é tramela?) e um boi quase entrou no nosso quintal. Só se via molecada pulando de tudo quanto é lado com medo do boi. Felizmente o boiadeiro foi rápido e reintroduziu o boi fujão no grupo. E assim a boiada passou...

Morei numa outra casa, essa ficava na avenida principal da cidadezinha, que tinha uma mangueira no quintal. Eu subia nela com uma faquinha e um punhado de sal no bolso do calção só pra comer manga com sal.

Naquele tempo, pelo menos no interior do Paraná, se usava arame farpado como varal de roupa. Meu irmão do meio era o Super Homem, ou Zorro, com sua capa de herói. Ele subiu na mangueira e pulou: "Acima e avante!". Nada como uns belos pontos acima do supercílio rasgado pelo arame farpado.

Lembro que meu pai dava banho na nossa cachorrinha Laika e a colocava em cima do telhado para secar, porque ela era branca e o quintal era de terra batida. Então a única forma dela tomar banho e secar sem se sujar era ficando em cima da casa.

Certa vez estávamos brincando no quintal e meu irmão (o super-herói) caiu e se machucou. Então gritamos por minha mãe. Ela saiu tão desesperada de dentro de casa que pisou com os dois pés sobre o tapetinho da porta que escorregou e caiu.

Então a levaram para o hospital, e ela ficou um tempo lá. Minha memória de criança não consegue dimensionar quanto tempo foi, um, dois ou três dias. Quem sabe apenas um meio período de dia... Só sei que meus irmãos maiores avisaram que ela voltaria numa certa tarde.
Mais que depressa, meus irmãos e eu fomos para o meio do mato colher flores para esperar a chegada de minha mãe.

Eu me lembro que andava descalça pelo mato colhendo as flores silvestres. E nem pensava que pudesse pisar em algo e machucar o pé, nem tampouco na possibilidade de ser picada por uma cobra ou outro bicho qualquer. De acordo com meu registro de memória infantil, as flores que colhíamos ficavam num terreno imenso e o mato chegava até a minha cintura. Havia uma imensidão de flores do mato (aquelas que não são cultivadas). Hoje imagino que o mato deveria ser bem menor e menos selvagem do que tenho registrado em minha memória. Aliás, a minha memória de mato deve  ser similar a memória do Neco Peteco com a distancia em que carregava o saco de açúcar (hehehe).

Depois de muito tempo, eu soube que minha mãe foi hospitalizada porque quando caiu ela perdeu o bebê que ninguém sabia que existia. Nem minha mãe sabia que estava grávida.

Meu outro "mundo paralelo infantil", bem diferente do primeiro, é a partir de meus oito anos, já em São Paulo.
Eu me lembro do dia em que cheguei de ônibus em São Paulo e vi aquela rodoviária cheia de gente caminhando pra lá e pra cá. Para mim, parecia um formigueiro. O primeiro rosto conhecido que vi, no meio daquele mar de pessoas estranhas, foi o da minha irmã Meiry, que já morava em São Paulo. Achei minha irmã tão esquisita porque ela tinha tinta colorida sobre os olhos. Que feio. Eu pensei, mas não falei. Com o tempo aprendi que aquilo que ela usava se chamava maquiagem e era moda as moças passarem aquilo no rosto. Bem, eu achava que só palhaço pintava o rosto... Eu era uma menina de oito anos que vinha do meio do mato direto para a civilização. Um choque para uma criança, mas me acostumei.

Assim as gostosuras e travessuras ficaram diferentes de quando meus irmãos e eu vivíamos no interior do Paraná. Deixamos de brincar de esconde-esconde entre os pés de café, e de nadarmos nos igarapés, Saímos das ruas de terra batida e empoiradas, das casas de madeiras com iluminação de lampião para as  casas de tijolos e ruas asfaltadas. 


E então trocamos nossas gostosuras e travessuras e passamos a tocar as campainhas das casas dos vizinhos e sair correndo, pular corda dupla na rua em frente de casa, jogar queimada e queimada japonesa na rua até anoitecer e a nossa mãe gritar que se não entrássemos para tomar banho e jantar o “couro ia comer”. Para quem não sabe, a tradução de “o couro vai comer” é “Vou te bater com a cinta de couro do seu pai se não me obedecer, agora!”... Posso dizer com segurança que minha mãe era ótima em argumentação. Poucas palavras, alguns gestos e excelentes resultados. Com certeza sabia atingir suas metas.

Voltando às travessuras: Certa vez teve uma tempestade em São Paulo e houve muitas inundações. Minha irmã, a mais velha, ficou tão preocupada com a violência da chuva que foi nos buscar na escola, mas quando ela chegou lá nós já tínhamos saído.

Para nós foi uma experiência maravilhosa. Eu tirei meu par de kichute e minhas meias e voltei para casa com os pés metidos na enxurrada que descia pela guia. Alguém sabe ou lembra o que é kichute? Aquele tênis preto com cravos que imitava uma chuteira. Bem, voltando à experiência: De vez eu quando parava e pulava sobre as poças só para ver a água transparente espirrar para todos os lados. Foi uma festa, mas quando chegamos à nossa casa, estava todo mundo chorando porque minha irmã tinha passado na escola e não nos encontrado. Logo pensaram que algo terrível pudesse ter acontecido conosco.

Passado o susto, veio o medo de que minha mãe pudesse fazer “o couro comer”. Ainda bem que ela apenas nos brindou com uma farta caneca de chá e bolinhos de chuva.

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Comentários

  1. Helo querida, sempre gosto muito dos teus textos. Eles me remetem à infância, às memórias e recordações de tempos muito bem vividos. Continue nos encantando! Bjos Guta

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  2. Que delícia rever estas lembranças de criança! Idade da inocência, de viver o presente com intensidade, de transformar tudo em brincadeira. É bom acordar a criança adormecida em nós!
    Isabelle

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  3. Você está me fazendo recordar minha infância tambêm! Quantas gostosuras, né? Era tudo meio precário, mas para nós era fantástico! Um beijo, querida!

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  4. Ah, a infância no Paraná... são as gostosuras que escuto como um veludo, de tão carinhosamente que são contadas. A infância de São Paulo é com certeza uma infância bem diferente, uma outra realidade, mas não deixou de ter suas gostosuras. AInda bem.

    Gosto de ler sobre a infância que moldou você, mãe. Porque você é essa pessoa extraordinária, tão rica de memória, carinho e talento. Nada é por acaso.

    Um beijo carinhoso da sua filhota.

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  5. "Se é verdade que "recordar é viver", então estamos vivendo bastante com sua ajuda. Parabéns, Belo. Renira"

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  6. Como sempre está muito bom. Além do mais, conheço todo este vocabulário; desde "tramela",ao "couro vai comer" e os deliciosos "bolinhos de chuva" que minha mãe também fritava no fogão de lenha. Uma delícia!
    Muito legal, estou a espera do próximo. Bjos.

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  7. Querida Helô,
    Que maravilha testemunhar desse dom maravilhoso que Deus te deu para escrever. Mais que escrever bem, você me encanta pela forma como narra os seus "causos" que dá até a sensação de não ser apenas uma espectadora, mas também personagem de cada uma delas.
    Beijo,
    Jackie

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  8. Rerere... agora sei quem é que veio lá do Paraná pra tocar a campainha da minha casa em São Paulo. Legal, Heloiza... faz a gente lembrar dos velhos tempos, em que as brincadeiras eram mais simples, ingênuas e saudáveis. Lá se vão os anos... um grande abraço.

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