Conto de fadas?


Neguinha como era carinhosamente chamada por alguns familiares era uma morena bonita. Cabelos castanhos escuros quase negros, apenas um metro e meio de altura, mas bem feita de corpo. Como diziam naqueles tempos “Uma cinturinha de pilão num corpinho violão”.

Mas Nêga não teve uma vida fácil não. Nasceu e cresceu numa fazenda no interior do estado de São Paulo, e numa época em que mulher aprendia desde pequenina a dizer primeiro “Sim, senhor.” para o pai de depois para o marido. Perdeu a mãe quando tinha apenas dois anos. Ela foi criada pelo pai, um homem rude e severo e por seus irmãos mais velhos que não facilitavam em nada a vida de Neguinha.

Desde pequena Neguinha cuidava dos afazeres domésticos, da lida da casa e da comida. Mesmo sendo pequenina ela levava sobre a cabeça um caldeirão ainda quente com o almoço do pai e irmãos que trabalhavam na lavoura.  Aos sábados tinha a árdua tarefa de passar e engomar os ternos brancos de puro linho para seus irmãos irem passear na cidade, e flertar com as moças solteiras. Nêga ficava em casa. Moça de família não saía por aí se dando ao desfrute.

Neguinha era uma menina sonhadora que quase nunca saía da fazenda, nem mesmo para ir à escola da região. “Estudar pra quê?” – dizia seu pai. “Uma moça precisa saber cuidar de uma casa e arranjar um marido, pra ser esposa e mãe! O que precisa é saber matar um frango e fazer um bom ensopado, cuidar da roupa do marido e matar a sede do esposo com água fresca trazida da mina.” 

E Neguinha ficava a imaginar o dia em que encontraria o seu príncipe encantado que a libertaria daquela vida e a faria feliz para sempre. Aí sim, ela teria a sua própria casa, e iria limpar cozinhar, lavar, passar e engomar os ternos de linho do seu príncipe encantado. 
Mal sabia ela que seu destino já estava traçado e o seu príncipe (ou não) estava ali, bem pertinho dela, na mesma fazenda.

Antônio era um peão que tinha vindo de Minas Gerais para trabalhar na fazenda da família de Neguinha. Um jovem esguio, moreno, bonito, muito bonito. Tinha olhos cor de mel e feições que lembravam o povo árabe. 
Todas as vezes que Neguinha aparecia com a matula  na cabeça cheia de comida, Antônio lançava olhares furtivos com o cuidado de não ser surpreendido pelos irmãos de Neguinha, pois com certeza se descoberto, a coça estava garantida.

Antônio conseguiu amolecer o coração da mocinha que acabou casando e engravidando, ou engravidando e casando. E pelo jeito Antônio não era o genro que o pai da Neguinha almejava para a filha. A família esperava que Nêga se casasse com o filho do dono da fazenda vizinha.
 O fato é que a pequena Neguinha nos altos dos seus treze anos se deixou seduzir pelos olhos cor de mel e pela beleza árabe daquele jovem “peão sem um tostão” da fazenda e quando se deu conta já estava casada e embaraçada. 

Desta maneira, Antônio juntou suas coisas numa trouxa, colocou Nêga, como gostava de chamá-la, no lombo de seu cavalo e partiu para novas terras, uma nova vida, uma nova família. E Neguinha acompanhou seu marido rumo a uma nova história. Rumo ao desconhecido.

Primeiro o casal ficou pelo interior paulista e tiveram seus primeiros filhos da leva de onze. Depois foram desbravar novas terras no interior do Paraná. Neguinha viajou em lombo de cavalo e dormiu em cama feita de tronco de árvores no meio do mato, morou em casas de fazendas enquanto Antônio as administrava. E assim foi tendo seus filhos. Todos nascidos por mãos de parteiras, quer dizer, todos menos a décima primeira que nasceu num hospital. Uma vida nada parecida com um conto de fadas da Disney.

Depois de idas e vindas, mudanças, transformações, tristezas e alegrias, Neguinha se muda de mala e cuia para a cidade de São Paulo. Vendeu tudo o que não coube dentro das malas, comprou passagens para ela e os filhos menores, pois os maiores já estavam na cidade grande, e vai para São Paulo. O seu Antônio já estava em São Paulo aguardando a família.

Durante a viagem, entre um sufoco e outro para manter as cinco crianças tranquilas dentro de um ônibus, ela sonhava com sua nova casa, e com sua nova vida numa cidade grande.
Em São Paulo a vida não foi nada fácil para essa pequena que já não tinha cinturinha de pilão num corpo violão. Era uma jovem senhora de carnes fartas, mãe de cinco filhos adultos, uma adolescente e de uma leva de pequenos. Para ela, mulher bonita tinha que ter dobrinhas. Costumava dizer que mulher magra parecia estar doente.

Um dia seu príncipe árabe, que tinha deixado de ser príncipe há muito tempo, foi embora. Para sempre. 
Neguinha, que já não tinha uma vida fácil criou os filhos menores com a ajuda dos filhos maiores, especialmente de sua filha mais velha. Filha essa que sempre esteve ao seu lado nas alegrias e nas tristezas.

Neguinha refez sua vida, entrou numa escola de alfabetização para adultos, arranjou algumas amigas, e de vez em quando saiam para dançar no “Baile da Saudade”. Ela gostava de plantas, principalmente orquídeas. Em sua casa havia um corredor que mal dava para caminhar de tantas latinhas e potinhos com plantinhas medicinais e flores. De tudo um pouco havia naqueles vasos improvisados. Cada pote de margarina ou lata de massa de tomate virava um vasinho.

Era uma delícia visitá-la, pois sempre tinha uma fornada de pão que tinha acabado de assar ou então seu famoso mantecal feito com banha. Uma delícia de lamber os beiços.

Quando Nêga me visitava gostava de mexer no quintal. Logo que acordava ia para o jardim, vestida de pegnoir, arrancar erva daninha ou plantar sementinhas que trazia na sacola. Eu tenho três vasos antúrios rosa claro que ela plantou. 

Nêga como o príncipe árabe gostava de chamar, foi convocada para cuidar do jardim celestial. Se ainda estivesse conosco, hoje seria um dia de muita alegria, pois estaríamos reunidos para comemorar mais um ano de vida dessa mulher guerreira que não foi poupada em nada nesta vida. Não teve vida de princesa. Nunca soube o que é ser criada por uma mãe, mas soube ser mãe. Encontrou pedras no caminho, mas mesmo assim criou onze filhos que souberam honrá-la.

Eu fiz do meu quintal um jardim em sua homenagem. Às vezes olho para ele e a vejo passeando por entre as flores e borboletas, contemplando a beleza das plantas. 

É assim que eu quero me lembrar desta mulher querida, tão forte e tão frágil. Que guardava numa gavetinha um caderno e uma caixa de lápis de colorir para fazer desenhos infantis. Mulher essa que me deu a vida.


Comentários

  1. Eu chorei de saudades da minha vózinha.

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  2. Amo loucamente minha sogrinha linda. Senti falta dela o dia todo, parece que desde ontem só sinto cheiro de pão caseiro. Deus, quem sou eu pra dizer quem merece ou não estar ao seu lado, mas disso tenho certeza, ela merece.
    Mais uma vez um lindo e comovente texto Helô, obrigada. ((Anna.))

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  3. Penso na jornada difícil que ela teve e no seu legado. A vida é surpreendente, são 11 filhos, um diferente do outro, mas são 11 pessoas do bem.

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