A cidade e o tempo


As mulheres cabeça de astronauta.


Desde que saí de São Paulo e fui parar naquela cidade a minha vida tornou-se um saquinho de surpresas. Sempre havia novidades, umas boas outras nem tanto.

A começar pela cidade, que era oposto a São Paulo. Uma cidade minúscula, menor que o bairro onde minha família morava, sem asfalto, sem rede de  esgoto, sem pontos turísticos. Uma cidade empoeirada, com homens de chapéus montados em seus cavalos circulando pela cidade e famílias empoleiradas nas carroças que vinham dos sítios fazer compras na cidade.  Estacionados em frente ao comércio, ao invés de carros, ficavam cavalos, carroças e uns poucos carros. Muito diferente do caos da cidade grande.

Eu lembro de que minha irmã me ensinou que as famílias dos sitiantes vinham para a cidade em suas carroças, mas as mulheres que trabalhavam na “casa de tolerância” vinham de charretes.

Essas mulheres, de tempos em tempos, saíam do prostíbulo para fazerem compras na cidade. Certa vez eu estava na loja quando duas delas entraram e vieram até mim e perguntaram:
- Você tem toalhinha higiênica?
E eu lá sabia o que era toalhinha higiênica? Então peguei as toalhas de rosto que havia na loja e coloquei sobre o balcão. Abri para elas olharem. E então a mulher com um sorrisinho maroto falou:
- É só isso que vocês têm? Isso não é toalha higiênica. Você sabe como é uma toalha higiênica?
Eu fiquei muda, paralisada, com cara de “Hã”. E então ela olhou para a amiga, deu risada e foi saindo em direção à porta quando olhou para mim e disse para todos ouvirem:
- Aposto que ela nem sabe para o que serve uma toalhinha higiênica.
E saíram da loja dando gargalhadas enquanto eu queria que o chão se abrisse para eu entrar. Meu rosto queimava. Eu queria ir embora dali, pois todos começaram a rir.

Realmente, essa cidade era diferente. Parecia que ela ficava dentro de  uma bolha. Que tinha parado no tempo. A cidade e o tempo. As músicas que faziam sucesso por lá já não tocavam mais nas rádios de São Paulo. Eram as “músicas antigas”. Eu falava de músicas que tocavam nas rádios de São Paulo e as pessoas não as conheciam.

E novela então? As pessoas quando descobriam que eu era de São Paulo queriam saber sobre os acontecimentos das novelas. Sim, isso mesmo. As novelas não eram transmitidas simultaneamente como hoje. Elas eram repetidas com muitos dias de atraso. Muitas vezes eu me perguntava: "Em que lugar eu vim parar?"

Ah, por um bom tempo eu fui o centro das atenções. Todos queriam se aproximar de mim para saber o que se vestia, se dançava, se falava em São Paulo. Mal sabiam que eu era uma menina criada com rédeas curtas que ia de casa para a escola e da escola para casa.

Como diria uma pessoa muito próxima: “Quando se chega nesta cidade, você sente como se tivesse atravessado um portal e voltado no tempo”.

Na cidade havia o famoso alto-falante. Ah, e como ele era falante. O dia inteirinho tocando músicas da terra e fazendo propaganda do comércio local. Começava de manhã bem cedo e terminava pontualmente às seis da tarde com a música e a oração da Ave Maria. Quando a música da Ave Maria começava a tocar antes de findar o dia, toda a cidade era tomada pelo silêncio absoluto, pois ela só era tocada antes do final do expediente para anunciar o falecimento de algum morador.

Era uma cidade, com uma única avenida principal que começava na igreja matriz e terminava na casa da meretriz. As diversões se resumiam a churrascos nos sítios dos amigos, a um único cinema que passava apenas filmes antigos, e ao clube da cidade.

Por isso, os bailes que realizavam no clube eram verdadeiros acontecimentos. A cidade ficava num verdadeiro alvoroço. As costureiras, coitadas, tinham que fazer cópias exatas dos vestidos de festa das revistas de moda, e depois fazer horas extras para dar conta de todas as encomendas de vestidos para o baile. Afinal, não era de bom tom uma moça da “sociedade” repetir um vestido de baile. Que horror.

Na loja era um verdadeiro congestionamento de mulheres buscando fitas de cetim e veludo, rendas, botões para serem encapados com tecidos finos. Tudo para não fazer feio no dia do baile.

Outra coisa imprescindível era na hora de fazer a reserva da mesa do baile. Tinha que se escolher aquela com visão privilegiada, e assim poder assistir a entrada de todos os participantes e comentar os vestidos mais bonitos e os mais acanhados. O casal mais bonito. Quem brilhou e quem foi ofuscado.

Melhor que o baile, só mesmo o dia seguinte na rodinha de amigos pra dissecar o acontecimento e extrair assunto para até o próximo baile.

Os bailes sempre aconteciam aos sábados. Neste dia havia uma invasão de cabeçudas na cidade, pois as mulheres, diferentemente das atuais que passam os cabelos a ferro para alisar, elas enrolavam os cabelos com bobs (ou bobes?) enormes.

Sobre os bobs colocavam um lenço colorido. O que acabava chamando mais a atenção para suas cabeças. E elas saíam pela cidade com cabeções enormes, parecendo estar usando capacetes.
Ninguém ligava pra isso. Acho que era fashion, uma verdadeira profusão de “dona Florinda”.

Depois de certo tempo eu já havia deixado de ser a menina da cidade grande para virar a menina da cidade que parou no tempo; que em dia de baile ficava com cabeça de astronauta. Ou seria “dona Florinda”? Certo cabeção?

Eu sei que disse para alguns que escreveria sobre meu encontro com Paquito, mas prometo postar na próxima semana. Por enquanto, me imaginem com quatorze anos, quarenta quilos e uma cabeça cheia de bobs (ou bobes?). Uma mini dona Florinda. Devia ser uma coisinha linda. 


Ah, acabei de me lembrar do baile especial em que houve uma apresentação de balé clássico e na hora em que a primeira bailarina deu um salto a roupa dela... Coitadinha, que vexame. Nem te conto. Ou conto?

Por enquanto é só pessoal. Se quiser comentar não se sinta acanhado(a). Vá em frente e chuta o pau da barraca
por Heloiza Grando ou Helo Helena


Comentários

  1. Gostaria muito de saber sobre suas recordações da época de Dancin Days, vc lembra sua linda? Cabelao tipo Júlia Matos, meia com sandália, e outros detalhes dançantes .......beijao.

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  2. Muito legal Helô, estou esperando o restante...
    Seria incrível ver uma foto sua desses tempos não? Ponha vai?
    Beijos!

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